terça-feira, 30 de junho de 2015

A Escola dos Glosadores (o início da Ciência do Direito)

Enviado por: Douglas Riccardi Guimarães
Autoria de: Guilherme Camargo Massaú

Escola dos Glosadores, iniciada por Irnério, constitui um marco de suma importância na história do Direito, tanto na parte condizente ao conhecimento do pensamento jurídico como teoria e prática. O Direito assume, definitivamente, uma posição autônoma no conhecimento, pois volta-se ao estudo específico. Devido à influência pioneira dos glosadores surgem as primeiras Universidades [32] Ocidentais, a primeira nascida em Bolonha, a alma mater, com os referidos glosadores, que serviu como modelo de ensino para as demais instituições. O que estimulou o desenvolvimento de outros métodos, como ocorreu na Universidade de Orleães, os Ultramontani [33], que se serviam da dialética escolástica e fizeram críticas às glosas de Acúrsio. Através disso e da convergência de estudiosos para Bolonha, pôs em evidência o método glosador. Como se pode observar, Bolonha não vive em isolamento, em diversas partes da Europa o estudo civilístico se desenvolveu com outros métodos, não tão destacáveis, e que se contrapõem dialeticamente com Bolonha. O surgimento do plano de estudo dos glosadores ainda está envolto em questões controversas, principalmente, quando se refere a recepção dos textos romanos e dos juristas percursores da análise desse direito.

Disposição do Corpus Iuris medieval

As disposições sistemáticas organizadas pelos glosadores não constituem a organização original. O período de renovação do estudo do Direito Romano trouxe algumas modificações nos textos de Justiniano; o trabalho de descoberta e de encaixe das peças recepcionadas pela escola dos glosadores ocasionou alterações determinantes na composição do Corpus Iuris Civilis que influenciaram os estudos subsequentes. Reunido os fragmentos do Corpus Iurisna cátedra de Irnério, este foi dividido em 5 volumes. O Digesto perde sua unidade ao ser dividido em três partes: Digestum vetus (livro 1º. ao título II do livro 24º.); Digestum infortiatum (título III do livro 24.º ao livro 38.º – ainda está repartido em duas seções); e Digestum novum (os demais 12 livros). Em relação à razão dessa divisão do Digesto existem inúmeras conjecturas, mas as mais verossímeis explicações foram forjadas por um glosador anônimo, no final do século XII, na introdução ao Digesto vetus; devido à maneira que se realizou a recepção, em partes, ou melhor, de acordo com a sequência do recebimento das partes do Digesto por Irnério se denominou essas três partes dessa forma. O Digesto vetus é denominado em conformidade ao primeiro contato com aqueles livros; ao passo que o Digesto novum é composto pela parte que era conhecida após os primeiros livros. No entanto, essas duas partes ao serem unidas, não formavam uma unidade, existia uma quebra na sequência de livros, foi então queIrnério, ao recuperar 14 livros centrais, observou que a lacuna acabou por ser preenchida e exclamou: ius nostrum infortiatum est, por isso a parte central se chama Digesto infortiatum [34].

O Codex, que manteve sua compilação original, apenas faltando os últimos três livros; os livros X, XI e XII encontravam-se em separado sob o nome de Tre Libri. As matérias neles disciplinadas faziam-se sem interesse, ultrapassadas pelas circunstâncias da tradição, ou melhor, caíram em desuso; são matérias fiscais e administrativas que não condiziam à época glosadora, assim, embora recuperado pelos glosadores, o Codex não se manteve completo. Com efeito, osTre Libri foram acoplados ao quinto volume, denominado Volumen parvum, que compreende cinco seções: 1) as Institutiones de Justiniano; 2) os Tre Libri doCodex; 3) as novellae de acordo com o Authenticum reduzido às 97 mais relevantes para o foro e para a escola, agrupadas em nove collationes; 4) a partir do século XIII foram agregados os mais importantes costumes feudais, os Libri Feudorum; 5) e, por último, um conjunto de constituições do Sacro Império Romano-Germânico, as extravagantes. Logo, serão esses livros legais que nortearam, em mais de um século, o estudo dos glosadores [35].

2. 1. O método introduzido

O método empregado da glosa não era uma autêntica novidade. No estudo da gramática, a breve explicação ou a modificação de uma palavra por seu sinônimo dava-se por meio daglosa. O fenômeno da utilização da glosa, na recepção desses textos romanos, advém da experiência de Irnério como professor das disciplinas do Trivium. A partir de então aconteceu o aperfeiçoamento da análise dos textos por meio da glosa, numa atividade exegética [36], pois ela tem objetivo de esclarecer o significado, a substituição de uma palavra ou do texto em breves palavras (a littera) – observando uma lógica de conceito, princípio ou instituto [37]. De logo evidencia-se, no nome da escola que expressa o método científico empregado na análise dos textos, principalmente o Digesto e as Institutiones, que circulavam com aparato de glosasdo Magister. As glosas consistiam, materialmente, em interlineares e marginalis de acordo com a localização nos textos; as primeiras encontram-se escritas entre as linhas e asmarginalis estão situadas à margem [38].

O ponto emanador da interpretação é a glosa, indissociável da docência, que serviu de apoio teórico à criação, durante o decorrer do tempo, de outros gêneros literários. O trabalho dos glosadores não se restringiu à simples exegese da littera, emergiram, através da oralidade da exposição do Corpus Iuris Civilis, significativos esquemas interpretativos como: oapparatus, as distinctiones, as quaestiones, a regulae iuris, as dissensiones dominorum, oscasus e a summae [39].

O apparatus consiste no esclarecimento coerente das diversas partes do texto; Azo destacou esse gênero. As distinctiones subsidiam uma visão sistemática das divisões de conceitos ou de matérias complicadas; assim aquele que se debruça na leitura desse gênero acaba por ser conduzido, de maneira consciente de seu progresso, de uma proposição a outra afastando as antinomias, e tende a alcançar a verdade pelo viés da aproximação. As quaestiones consistem em disputas entre casos controversos condizente ao um fato (quaestio facti), e a interpretação de uma regra jurídica (quaestio iuris) era utilizada como um exercício acadêmico, no qual o Docente elabora um casus e convoca dois estudantes, sendo um o reus e o outro auctor; após o confronto de argumentos, o Lente anuncia ou pronuncia a decisão (determinatio). As regulae iuris, presentes na época romana, envolvem e isolam determinados conceitos do seu contexto, favorecendo a aplicação. As dissensiones dominorum estão calcadas nas divergências dos mestres sobre relevantes questões. Os casus se distinguem das quaestiones por não apresentarem disputa, são exemplificações de casos práticos com a aplicação da norma. A summae, como o significado da palavra demonstra, calcavam-se em exposições voltadas para resumirem o conteúdo de um título ou livro do Corpus Iuris; a dificuldade em empregar a técnica da summae dificultou a maioria dos glosadores de utilizá-la, no entanto, os juristas mais notáveis escreveram sua summae. Diversos estudantes encontraram nelas uma forma resumida, de maneira essencial, do Direito Civil [40].

A atividade dos glosadores concentra-se na interpretação, cuja mentalidade se mantém dogmaticamente idêntica, a seqüência das leges conduz ao direito erudito, nada escapa à sistematicidade do Corpus Iuris e à ordenação realizadas pelos glosadores. Inclusive as aulas, ou melhor, as lecturae [41] acadêmicas seguem essa ordem, até mesmo porque no Digesto e no codex existem preceitos disciplinadores da interpretação [42]. Isso tudo devido à subtração do Corpus Iuris Civilis do seu contexto histórico, pois nele se encontra legalis sapientia justamente pela atribuição de estatuto equivalente ao texto bíblico, a compilação – com seu vasto repertório de direito positivo – de Justiniano passa a ser considerado, então, divino; nisso soma-se a relação de autoridade com o logos que determina a interpretação, logo a auctoritas do interpretador também se faz evidente no contexto da atribuição da verdade. Na compreensão doutrinal do texto, no sentido de atingir a revelação da verdade, se condenava a desfuncionalização que prejudicava o sentido verdadeiro da lex da corruptio librorum; assim a interpretação, ou melhor, a tradução ipsis litteris e de adnotare buscam, justamente, a preservação da autenticidade do Corpus Iuris. Os glosadores entendiam a interpretatio no sentido de aclaramento, da correção, da ampliação e da delimitação da littera; apegada ao texto a atividade dessa escola, nos primeiros momentos, não existiam critérios precisos de hermenêutica. A vinculação nas afirmações de Justiniano em sua consonantia, a concordia, os priores e os posteriores das leges levam em conta a unidade e a sistematicidade doCorpus, esquemas disponíveis cuidam da harmonia das normas de uma interpretação sistemática, que parte das ligações interiores do arcabouço sistemático. Dessa forma, a utilização de esquemas de deduções lógicas e de categorias aristotélicas evidenciam-se nas seguintes formas: causae materialis, finalis, efficiens e formalis; além do mais constata-se figuras escolásticas como: causa proximas e remota, propria e impropria, as determinações de gêneros (genera) e de espécies (species, specialiter) e ainda de determinados processos, quais sejam: distinctio, divisio e subdivisio. Com a escolástica tardia algumas dessas figuras serão esquecidas [43].

NOTAS
[32] O professor recolhia o que reputava trechos do Corpus Iuris Civilis e ministrava em suas aulas; os aspectos teóricos preponderavam, o direito local, a prática e os demais aspectos ligados à prática não eram conhecidos através do ensino universitário. Destarte, o direito conhecido pela praxis era considerado como direito dos incultos, ao passo que o ensinado nas Universidades era voltado aos eruditos. Vide: DAVID, Os grandes sistemas… pp. 32-33. Universidades no XII século: Bolonha, Orléans, Montpellier, Salamanca, Valladolid, Coimbra, já no século XIV: Prag, Wien, Heidelberg; Köln e Erfurt. SCHRAGE, Utrumque Ius. Über das römisch-kanonische ius commune als Grundlange europäischer Rechtseinheit in Vergangenheit und Zukunft. In: Revue Internationale des Droits de L’Antiquité. 3. Série, Tome XXXIX. p. 394.

[33] Vide: WIEACKER, História do direito… p. 59.

[34] Vide: MARQUES, História do direito… pp. 25-26.

[35] Todo o trecho baseado em: MARQUES, História do direito… pp. 21-26.

[36] GILISSEN, Introdução histórica… p. 343.

[37] MARQUES, História do direito… pp. 27-28.

[38] A forma de indicação da autoria da glosa era feita através da inicial ou sigla do nome, por exemplo: b = Bulgarus; m = Martinus; rog/ro = Rogério; y/w/Ir = Irnério... Outra forma de distinção refere-se à glosa redacta, escrita por um professor; e à glosa reportata, quando escrita por aluno que faz referências de citações de opiniões de nomes destacados, por exemplo: secundum m(artinus), secundum b(ulgarus) […]. MARQUES, História do direito… p. 27.

[39] Vide: NEVES, Método jurídico. p. 293.

[40] Exposição baseada em: MARQUES, História do direito… pp. 28-30.

[41] Vide: BELLOMO, Der Text... p. 62.

[42] “«No que foi estabelecido contra a razão do direito, não podemos seguir a regra jurídica» (D. 1, 3, 15). Da mesma forma, adverte-se o intérprete que não basta reter as «palavras», mas é necessário compreender o «fim» e os «efeitos» das leis (D. 1, 3, 17); afirma-se que as expressões singulares devem ser compreendidas à luz da «lei inteira» (D. 1, 3, 24) e defende-se o emprego da analogia (D. 1, 2, 12 e 13).” MARQUES, História do direito… p. 32 (grifo do autor).
[43] WIEACKER, História do direito… p. 52.

REFERÊNCIA

MASSAÚ, Guilherme Camargo. A Escola dos Glosadores (o início da ciência do Direito). Disponível em: <http://www.sociologiajuridica.net.br/lista-de-publicacoes-de-artigos-e-textos/66-historia-e-teoria-do-direito-/102-a-escola-dos-glosadores-o-inicio-da-ciencia-do-direito>.

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